segunda-feira, 12 de abril de 2021

 

O júri feminista que ninguém viu



Ingriane morreu, Luciene foi presa e mais uma vez as mulheres pagaram com a vida pelas políticas misóginas de um estado que não nos vê como sujeitas de direito ou detentoras de direitos humanos, sexuais e reprodutivos, que incluem, entre outros, a possibilidade de decidir livremente sobre nossos corpos.

O que a maioria das pessoas sabia sobre esse caso ocorrido em maio de 2018 era que se trava de uma mulher acusada de realizar aborto com talo de mamona, do qual resultou a morte da gestante. A repercussão do crime foi grande na época, na conservadora cidade “imperial” de Petrópolis-RJ, e se espalhou pelo país alguns meses depois, em agosto do mesmo ano, por ocasião da audiência pública realizada no Supremo Tribunal Federal (STF), destinada a debater a ADPF nº 442, que trata da descriminalização do aborto, nas falas públicas de mulheres feministas, sobretudo na voz da professora Débora Diniz, da UnB, que o citou em sua importante fala no tribunal.

No documentário “O fim do silêncio”, de 2008, a diretora Thereza Jessouroun já chamava a atenção para o tabu do aborto ilegal e da necessidade de as mulheres falarem sobre isso. Mas a realidade ainda oculta a realidade dos abortos no Brasil e a atuação do sistema de justiça criminal na repressão a mulheres por esse crime, em especial as negras e pobres que são as mais processadas e presas pelo delito, além de serem as maiores vítimas letais de interrupções inseguras que acontecem todos os dias em nosso país.

Fora do Tribunal do Júri, localizado do distrito de Itaipava, só houve silêncio sobre o caso de Ingriane e Luciene, e o que a maioria não sabe é que em meio à pandemia um julgamento ocorreu em 18.03.21, no mês das mulheres, dez dias depois do dia de luta internacional das mulheres. Apesar do destaque midiático dado ao caso quando da audiência pública no STF, que repercutiu, inclusive, no New York Times, pouco foi falado posteriormente sobre as mulheres envolvidas, sobre a vítima e sobre a ré, sobre a defesa, enfim, sobre tudo o que as levou ao júri armado para um crime que sequer deveria existir.

Duas mulheres negras, pobres e trabalhadoras, vítimas de sofisticados arranjos do racismo e do machismo estruturais. Ambas mães de três filhos, conhecedoras do desespero de ver-se grávida sem contar com apoio de quem quer que fosse. Tantas coincidências só poderiam resultar em entendimento e compreensão. E foi assim, vestida desses sentimentos, que Luciene ajudou Ingriane a realizar um procedimento que ela própria já tinha realizado em si mesma e, com o auxílio de um talo de mamona, deu-se fim àquela gravidez indesejada.

Infelizmente, foi por ele também que, dias mais tarde, Ingriane, depois de ter demorado a buscar ajuda quando começou a se sentir mal, com medo de ser presa, finalmente chegou na emergência de um hospital próximo. Ela ficou mais de dez dias internada, não resistiu a uma septicemia e acabou falecendo no hospital, não sem antes agonizar por dias evitando buscar a ajuda que poderia tê-la salvado.

A pergunta que ressoava no júri que as trouxe ao banco dos réus (Ingriane teria sido também acusada se tivesse sobrevivido) foi simples: seriam elas duas as únicas culpadas pelos dolorosos desdobramentos? Por certo que não. Impossível isentar o Estado que ao negar direitos sexuais e reprodutivos às mulheres em sua plenitude, segue sendo cúmplice da morte e adoecimento de milhares de mulheres todos os dias.

Foi gratificante ver a boa recepção da importante tese da culpa do Estado na morte das mulheres em casos de aborto, apresentada como parte de uma defesa política e jurídica feminista da ré, e ainda, das teses refinadas e ousadas apresentadas na defesa técnica, na qual se pleiteou o reconhecimento da atenuante inominada da miserabilidade feminina decorrente da desigualdade social e da falta de acesso à direitos sexuais e reprodutivos para provocar o debate da realidade social, tanto da ré como da vítima desse crime: duas mulheres negras, mães, descasadas e trabalhadoras que sofrem com o machismo, o racismo e a desigualdade social.

Numa das regiões mais conservadoras do Estado, o resultado foi a condenação com a menor margem possível. Foram consideradas todas as demais demandas da defesa, resultando na menor pena possível para a ré, que foi imediatamente colocada em liberdade por já ter cumprido seu tempo de pena, boa parte em prisão domiciliar, um direito conquistado pelas mães de filhos pequenos somente em 2016. Esse resultado reflete o trabalho de diversas mulheres ligadas ao Projeto de Extensão Mulheres Encarceradas, desenvolvido na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além das colaborações e debates de tantas outras que se dispuseram a estudar e construir teses adequadas e arrojadas para o caso[1].

Foi um júri feminista, no qual foram questionados inclusive o abandono paterno e a falta de responsabilização social de parceiros que não se sentem parte do problema, além de ter sido problematizada a culpa do Estado na morte da vítima e da urgência da legalização do aborto. A importância desse júri feminista precisa ser reivindicada, pois mesmo uma cidade conservadora como Petrópolis não pode ficar imune a uma realidade que não mais pode ser suportada em silêncio. Sigamos vigilantes, não há volta para o avanço das mulheres! #Legaliza, pela vida das mulheres.

1] A defesa no Júri foi feita pelas advogadas Luciana Boiteux, coordenadora do Projeto, Thais Pinhata de Souza, Raquel Alves Rosa, Elaine Barbosa e Camila Jacome.

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